Há um Deus que está do nosso lado.

 

Matheus Cosmo

E o céu deixaremos
aos anjos e aos pardais.
(Heinrich Heine)

            Talvez por conta da conhecida Bancada da Bíblia, somada a do Boi e da Bala, muitopsocial se tem dito e escrito sobre o avanço de um alto teor conservador e fundamentalista na sociedade brasileira, especialmente na intitulada “nova classe média” que nada mais é do que a expressão de uma classe trabalhadora que conseguiu uma ascensão econômica nos últimos anos, em parte graças a algumas das políticas consolidadas nos governos do Partido dos Trabalhadores – o mesmo partido que não conseguiu mobilizar nem conscientizar essa mesma classe de sujeitos e que, por isso, hoje a encontra voltada, exalando um sentimento de ódio profundo, contra seus métodos de governo e suas pautas políticas. É sempre preciso culpar alguém pelos estragos feitos e pela interminável crise. É conveniente, portanto, dizer que a culpa é do PT, sem que se perceba que tanto o verbete culpa como crise constituem dois dos pilares de edificação do próprio sistema capitalista. Marshall Berman dizia que ilustrar uma sociedade em completo caos, em um processo de crise profunda, é apenas afirmar que tudo continua extremamente bem aos olhos do capital: a destruição – ou, melhor, a profunda sensação de uma constante crise e destruição – é parte de seus componentes essenciais. Nessas circunstâncias, não é de se estranhar que essa mesma massa desorientada, que protagonizou algumas das últimas manifestações de Junho de 2013, busque amparo, proteção e orientação na religião, na figura de um Deus onisciente, onipresente e onipotente. Quando a vida se revela como um impasse, nada melhor do que designar a um Outro a resolução de todos os problemas – e, se algo errado acontecer, será apenas a expressão de sua vontade. O sujeito apresenta-se como um mero veículo de manifestação de uma verdade que o ultrapassa. Contudo, graças a Deus, eu diria, alguns grupos já parecem caminhar na direção oposta.

 

14
Albert Roggenbuck, a Drag Queen Dindry Buck, fazendo sua homilia.

Na manhã deste domingo, 12 de junho de 2016, um fato chamou a atenção de uma grande comunidade do centro de Itaquera, na Zona Leste da cidade de São Paulo. Pela primeira vez, uma das maiores igrejas da região abria suas portas para ouvir o testemunho de uma drag queen: Dindry Buck. Explico: a Igreja Nossa Senhora do Carmo prepara-se para comemorar, no dia 16 de julho, o dia de sua padroeira. Até lá, todos os domingos que antecedem a chegada de tão esperado dia voltam-se ao tema escolhido como eixo das orações: “Provados pela vida, arriscam na esperança”. São sete domingos de oração voltados à escuta de testemunhos de pessoas sem teto, indígenas e militantes de diversas áreas: todos que vivenciaram os desafios e preconceitos lançados pela sociedade contemporânea, mas sempre souberam responder tais demandas sem abandonar sua possível fé. Mas uma fé em quê e em quem, alguém poderia perguntar. Talvez seja essa a pergunta central das provocações lançadas por tal comunidade. Como participante da liturgia deste domingo, esboço aqui uma possível resposta.

 

O publicitário e jornalista Albert Roggenbuck, idealizador do Esquadrão das Drags, iniciou seu discurso afirmando que ser uma drag queen, tornar-se Dindry Buck, foi uma de suas mais felizes escolhas – uma escolha que em muito ampliou o sentido e a potência de sua própria vida. Contudo, ser homossexual nunca foi algo que esteve em seu domínio de escolha. Nunca foi parte de uma consciente seleção, mas sim uma revelação do inconsciente – e, desde o advento da psicanálise, todos sabemos que, para nosso bem, é inútil lutar contra nossas próprias verdades inconscientes. Com um discurso extremamente afirmativo, Albert não teve medo nem vergonha de dizer: “Sou homossexual e sou drag queen. Tenho a mais absoluta certeza de que Deus me ama e não é à toa que ele me deu esse dom lindo de levar alegria, amor, e de proporcionar momentos felizes a tantos com meu trabalho que, para mim, é mais do que um trabalho: é uma missão”. Desde o início, fez questão de relembrar que, onde há amor e caridade, Deus está sempre presente. Lembro-me de que, em um de seus mais famosos livros, “A paixão segundo G.H.”, Clarice Lispector assume chamar de amor uma força desconhecida que, na verdade, ela ainda é incapaz de saber o verdadeiro nome: “é preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto”. Uma coragem que certamente esteve presente no projeto literário de tão brilhante escritora e que também se fez presente na manhã deste domingo, no discurso de Albert e na escuta atenta de cada um dos fieis sentados nos bancos da grande igreja. Decerto, Deus ali estava presente – encarnado em seus impulsos de coragem e fé.

Um dos cantos enunciados ao longo de toda a liturgia era da conhecida Campanha da Fraternidade de 2010. Acompanhando um de seus versos, a assembleia entoava, em uníssono: “Teus ouvidos se inclinem ao clamor desta gente oprimida”. Por conta de minha formação em Letras, sempre prestei bastante atenção nos possíveis sentidos de cada sentença. Passados seis anos desde tal Campanha, é possível dizer que o tempo presente exige novas atitudes da própria Igreja. Já não se trata apenas de ouvir o clamor dos oprimidos, mas sim de agir concretamente na realidade das coisas. Apenas relatar um histórico de opressão não acarreta em nada a não ser em um improfícuo discurso de lamentação. Menos do que rezar pelos homossexuais, mortos diariamente em cada um dos cantos deste país, simplesmente por ser quem são, chegou o momento de colocar-se ao lado deles, ao lado de todos aqueles que são cotidianamente oprimidos – algo que o Papa Francisco, o Padre Júlio Lancellotti e o Padre Paulo, pároco da Igreja que promove tais eventos, por exemplo, já parecem ter entendido há tempos. Alguém poderia afirmar que esta não é nem deve ser a função da Igreja e que isso é apenas a expressão de setores da velha e tacanha Teologia da Libertação. Se for esse o caso, eu diria, portanto, que a Teologia da Libertação parece ser um dos poucos setores da Igreja Católica que ainda carrega alguma razão para existir, simplesmente porque sua religiosidade afirma-se no plano da realidade. Talvez a fé só faça sentido quando possa ser aplicada e exercida em algo comum – de preferência, em uma política de libertação deste povo que sofre. Já dizia Brecht que, contra o progresso da barbárie, este povo é o único aliado possível. A verdadeira religião não é aquela que ensina seus fieis a temer um Deus todo poderoso, mas aquela que ensina as pessoas a serem autoras de suas próprias histórias. Se não há qualquer essência que preexista e predefina a existência, é preciso coragem para agir: é a ação que faz e cria homens e mulheres. E isso tudo exige prontidão – a mesma que invadiu Albert e Paulo na manhã deste domingo.

Acredito que ainda não respondi a pergunta sobre a fé – aquela que me propus a responder logo no início deste texto. Certa vez, Freud afirmou que os poetas já disseram tudo aquilo que nós tentamos duramente sistematizar, com nossos esforços científicos (talvez por isso a cultura seja tão ameaçadora a regimes totalitários e ilegítimos governos golpistas). Em um de seus contos, Caio Fernando Abreu dizia desejar “uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê” – “tem coisa mais autodestrutiva que insistir sem fé nenhuma?”. Imagino sempre que essa fé seja algo semelhante a um sopro de vida, a uma tamanha intensidade que não se traduz apenas em sentimentos religiosos, mas que encontra expressão em todas as tentativas de reinvenção da própria vida, revisando todos seus modos de ser e de amar. Acima de tudo, essa fé proporia uma vida inteiramente comum, porque essencialmente igualitária. Assim sendo, também a religião seria uma grande aliada nessa difícil construção – não aquela que ainda acredita em um divino impossível, de alguma outra dimensão, mas aquela que se faz aqui e agora, aquela do subterrâneo Cristo, de Murilo Mendes – o Cristo que “Nasce da falta de pão,/ Nasce da falta de vinho,/ Nasce da funda revolta/ Contida pela engrenagem/ Da roda de compreensão./ Nasce da fé maltratada,/ Vagamente definida.// É um Cristo dos operários/ Atentos, em pé de greve,/ Filhos de outros operários/ Mortos na guerra civil./ É um Cristo dos estudantes/ Sem dinheiro para as taxas./ É um Cristo dos prisioneiros/ Que no silêncio cultivam/ A pura flor da esperança./ É um Cristo de homens-larvas,/ Famintos, inacabados,/ Morando em covas escuras/ De Barcelona e Valência./ É um Cristo da experiência/ De padres inconformistas/ Que não abençoam espadas/ Nem incensam o ditador./ É um Cristo do tempo incerto./ É um Cristo do vir-a-ser,/ Formado nos corações/ Da Espanha que não se vê.”.

Para concluir, parece ser possível afirmar que, no final das contas, Paulo Freire estava extremamente certo ao dizer que a ideologia está presente em todos os lugares: a questão, apenas, é saber se a ideologia que se defende é inclusiva ou excludente. Este debate teria como base, portanto, as diferentes interpretações – ideologias, consequentemente – das escrituras bíblicas, a competir constantemente dentro da própria instituição e estrutura religiosa. Contudo, saber qual interpretação é mais propícia e favorável a um determinado texto e contexto é algo básico que se aprende na escola, em aulas de literatura e análise de discurso. Uma pena que nosso atual ministro da Educação seja quem é, herdeiro de um partido que compôs a antiga Arena, durante a ditadura militar, e que seu fiel escudeiro seja ninguém menos do que Alexandre Frota, autor de deploráveis e estapafúrdias propostas políticas. Mendonça Filho já disse, há muito tempo, de qual lado está e quem pretende favorecer com seu impulso de privatização. Já Frota, o pregador confesso da cultura do estupro em rede nacional, bem, ele mesmo já disse que o negócio, para ele, é outro…

matheus cosmoMatheus Cosmo, 21 anos, mestrando em Artes Cênicas e Bacharel em Letras – USP.

 

 

 

***Texto cedido pelo autor para este Blog***

Um comentário em “Há um Deus que está do nosso lado.

  1. Matheus, o querido Eduardo Brasileiro que me mandou esse link e como disse a ele, repito, estou como uma nascente de um rio, chorando de emoção de cada manifestação de carinho e respeito que recebo. Ontem foi um marco não só na vida de muitos que vieram me dar carinho e falar para mim: tenho um filho, um primo, um sobrinho, alguém de minha família que é lésbica ou gay, mas na minha vida de cristão e militante. Como falei num post: Ainda estou descendo do Monte Tabor e voltando para a realidade.
    Seu texto é lindo, nem vou ousar escrever mais para não estragar a beleza impressa nela.
    Obrigado por tudo, todo meu carinho para você.
    Albert/Dindry

    Curtir

Deixe um comentário