Elogio à Sensibilidade

Capa para versão deste texto em vídeo no Canal do Youtube Paz e Bem:

Belchior: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro

Queridos amigos e queridas amigas, paz e bem!

Há tempos quero falar de um tema que me ecoa como um oceano. Hoje, tomei coragem para tentar dizê-lo, por um duplo esforço: A possibilidade de me reconhecer melhor após vê-lo e também a oportunidade de contribuir com nossos caminhos. Falo do tema SENSIBILIDADE. Farei um elogio à sensibilidade e reflexões que buscam alimentar a fé e o compromisso sociopolítico, portanto uma perspectiva ecointegrada.

Faço um recuo e vou à minha infância e juventude. É sabido por todos que a educação eurocristã que balizou o ensino nos últimos séculos é uma educação racionalista. O racionalismo é tomado por vícios e/ou neuroses: o antropocentrismo, o produtivismo, o extrativismo, o patriarcado, o racismo. Esses são nossos pecados de origem colonial. Nos habitam, nos incomodam, e cada um e cada uma durante sua vida escolhe enfrenta-lo ou não, e eu digo escolhe porque não é somente uma questão de conhecimento, mas de apelo dos que estão a nossa volta a necessidade de mudar. E aí chego ao tão famigerado tema, a sensibilidade.

Como dizia, sou fruto de uma geração que não desfrutou nem em casa e nem na escola a educação socioemocional. Em casa os problemas ficavam para debaixo do tapete, e isso não é falta de amor, não. Eu nunca fiquei desamparado pelo amor dos meus pais, eu falo de uma coisa mais sútil: a incapacidade de saber lidar com o turbilhão de coisas que está acontecendo conosco na adolescência e juventude. Entre acertos e erros, fui moldando uma necessária sensibilidade do cuidado com o outro. Foram as pastorais que me ensinaram que abraçar, segurar na mão, olhar nos olhos, são tão fundamentais quanto um projeto ideológico que preveja a emancipação material da desigualdade, da violência, e por aí vai.

A sensibilidade é premissa de qualquer revolucionário. Foi lendo Ernesto Che Guevara que fiquei tomado pela sua sensibilidade. Che dizia que a libertação do humano não é um ato isolado, uma revolução por exemplo, e sim um processo: é preciso construir a liberdade. Ele dizia: “Em Cuba o esqueleto da nossa liberdade total está pronto, mas a sua completa execução não será alcançada se não com o advento da sociedade comunista universal”. Isso é importante para percebermos que a revolução em Cuba vem caindo cada vez mais que as condições globais lhe são desfavoráveis. Não é preto no branco. Estamos falando de algo maior que qualquer ideologia, o sonho de emancipação, é uma verdadeira sensibilidade que bebe de um processo de perceber: somos um todo diverso e interconectado.

Hoje, tenho ido a tantos lugares virtualmente e alguns presenciais para assessorar grupos e tenho tatuado na fala o provérbio africano: “é preciso compreender o mundo a partir dos olhos de quem chorou”. Admito, odeio grandes formulações técnicas. Elas parecem tão distantes da linguagem e do gosto de um povo que só quer domingo escutar uma música, correr no parque, preparar um almoço, tomar uma boa bebida e ver os seus em volta da mesa. E, mais: essas formulações em quase totalidade não percebem a mãe terra falando, somente reproduzem o grande motor ideológico dominante.

É preciso retomar a escuta atenta do planeta. Os anos que seguem acompanham uma crescente reação da mãe terra. A secura deste mês, os riscos cada ano mais fortes de um apagão energético me arremete a uma prece: preciso me humanizar diariamente se não me afasto da vida como um todo, de sua complexa teia de interdependência e do necessário cuidado ecocomunitário. A sensibilidade nos arremessa a projetos comuns, coletivos.

São essas pessoas que diariamente tem fornecido ao povo brasileiro a sensibilidade humanizadora. Relembrado a dimensão da responsabilidade coletiva, de que todos não estamos prontos mas vamos aprendendo dia após dia a sermos mais abertos sobre nossas dificuldades, sobre nossos medos e confiarmos na ajuda do próximo.

As lutas e resistências latino-americanas nos fizeram criar um ideal de sujeito histórico perigoso. Um sujeito não vacilante que precisa preparar sua comunidade, organizar as massas, pagar as contas, ter uma agenda imbatível, precisa ter sacrifício perene, têm de estar atento a esses ditames. E, quando vemos onde está o humano? O ser sensível a tudo e a todos a sua volta? Meu grande irmão e teólogo Daniel Souza num texto precioso e denso chamado “Adeus aos mártires” publicado no site da Irmandades dos mártires da Caminhada faz uma provocação certeira bebendo das teólogas feministas Ivone Gebara e Marcella Althaus-Reid: precisamos superar essa identidade fixa do sujeito histórico libertador. O texto é precioso, vale a pena lê-lo e saboreá-lo. Mas nos aponta que sensibilidade tem estado no subterrâneo das práticas sociais libertadoras. Daniel sempre me lembra: e o ócio? E a festa? E a dúvida? – concordo, temos de ser sensíveis aos nosso desejos e medos.

Escolhi como epigrafe dessa reflexão o eterno Belchior “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Uma confissão de estarmos morrendo todos diante das dores e sermos sempre salvos pela esperança. Esperança, filha da sensibilidade nos leva a alteridade de buscar outros caminhos, fórmulas ou possibilidades. É realizar um inédito viável, como nos diria Freire. O que a gente quer é respirar. Por isso, a sensibilidade nos eleva à esperança. George Floyd bradou: “I CAN’T BREATHE” “eu não consigo respirar”. Nós não conseguimos respirar. O povo afro americano, as mulheres, as juventudes, os idosos.

Um exercício fundamental para não tornarmos amargos diante da realidade, é nos impregnarmos da esperança que vem guiando o povo neste tempo. É um erro abissal dizer que povo não tem esperança, que não há um grande projeto de esperança do povo. A esperança ainda é micropolítica. É afeto, é gente pra abraçar, é gente para poder ouvir e contar nossas impressões sobre o filme ou série, ou aquela música que ouvimos. É gente para rir de nossas lutas que não deram em nada e de nossas bandeiras que não vingaram. É também o gesto de solidariedade da cesta básica. É perder a noção do tempo num parque rodeado dos seus ou avisar o outro pelo celular “Você viu a lua hoje?”.

Parece que em meio ao caos da vida há um elã que nos reconecta ao essencial que não é perder-se numa abstração perigosa da realidade e nem num relativismo egoísta. É ter certeza que entre as dores desse mundo, todos vão dia-dia buscando goles de alívio e repouso.

Confesso a que me lê e escuta até aqui, que tem sido meu verdadeiro refúgio. A urgência de colapso civilizatório tem me feito triste, e viver em tempos de angustia, de partidas, de separações, de ausência de afeto. Isso dói. Mas é mais bonito e potente ainda o gesto como o povo sorri numa roda de samba, como um militante vai a rua por um Brasil plural e democrático, como uma jovem reivindica espaço na sociedade, como tem gente espalhada nas noites frias com uma comida quente e um cobertor. Em algum lugar do mundo alguém agora chora e ao mesmo tempo recebe um abraço.

Com eternizou Luís Carlos da Vila:

Um dia, meus olhos ainda hão de ver/ Na luz do olhar do amanhecer /Sorrir o dia de graça /Poesias, brindando essa manhã feliz/ Do mal cortado na raiz/ Do jeito que o Mestre sonhava / O não chorar / O não sofrer se alastrando / No céu da vida, o amor brilhando / A paz reinando em Santa Paz!

Nossa condição humana, sensível e amorosa, é a chave de nossa emancipação. Paz e Bem.

Eduardo Brasileiro, educador.

22 de agosto de 2021

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