CATOLICISMO E HOMOAFETIVIDADE – ensaio de aspirações intuitivas (Parte I)

Por Padre Paulo Sérgio Bezerra.

“O Catolicismo tem sido, durante séculos, um caldo de anti-sexualismo e, o eco das condenações eternas, ainda ressoam em nosso subconsciente cultural. Temos medo do que somos e inibimos nossas expressões naturais, uma vez que ficamos tolhidos por injunções deformadoras de nossas personalidades” (Eduardo Hoonaert).

Curso de Verão de 2015 debateu sexualidade como caminho da dignidade.
Curso de Verão de 2015 debateu sexualidade como caminho da dignidade.

1. INTRODUÇÃO

             A proposta do tema era “religião e homoafetividade”. Optamos por “catolicismo e homoafetividade” em vista da amplitude de extensão do termo “religião”. Os próprios termos “catolicismo e homoafetividade” são, de per si, um universo de produção teórico-prática a desafiar a própria reflexão e vivência dessa realidade à qual se referem bilhões de seres humanos.

 “Catolicismo e homoafetividade”, historicamente se confrontaram e se antepuseram. Por este binômio se acenderam “fogueiras de inquisição” e “fogueiras de discussões”, na maioria das vezes, produzindo algozes e vítimas. A Teologia da Libertação se propõe a debatê-lo.

A cruz é política! Ela denuncia sistemas de morte (legitimados por linguagens religiosas) e marcam em seu paradoxo a resistência & a luta: haverá ressurreição, a imaginação de novos mundos em que os corpos vivam em sua intensidade e vontade! O desafio, ante a denúncia da crucificação, é descer da cruz as vítimas, as lésbicas, os gays, as(os) travestis... O desafio é fazer ressurreições, agora, ali, lá longe, pontual, ampla...  A carne pulsa, deseja, quer, arrepia: pela vida!
A cruz é política! Ela denuncia sistemas de morte (legitimados por linguagens religiosas) e marcam em seu paradoxo a resistência & a luta: haverá ressurreição, a imaginação de novos mundos em que os corpos vivam em sua intensidade e vontade! O desafio, ante a denúncia da crucificação, é descer da cruz as vítimas, as lésbicas, os gays, as(os) travestis… O desafio é fazer ressurreições, agora, ali, lá longe, pontual, ampla…
A carne pulsa, deseja, quer, arrepia: pela vida! (Daniel Souza, teólogo UMESP)

A complexidade escondida atrás dos termos desafia a irredutibilidade de posicionamentos dogmáticos rígidos tanto quanto dogmáticos laxistas práticos. Embora o catolicismo ateste, em sua história um “caldo de anti-sexualismo”, agora vê-se premido pela “mudança de época” a abraçar um novo paradigma de compreensão teórico-prática da sexualidade humana na qual a “homoafetividade” se firma como uma das expressão irrefutáveis da vivência da própria sexualidade.

Se de um lado paira a sempre ameaçadora espada de Dâmocles – expressão pérfida dos autoritarismos de todos os tempos e matizes -, por outro, a marcha pascal da consciência da liberdade – monumento martirial da dignidade humana -, é de atualidade insurgente e imprescindível. Somos, inexoravelmente, seres humanos sexuados, fendidos e partidos, à cata custosa e prazerosa do que possa, humana e divinamente, saciar os desejos – inclusive o desejo de Deus.

2. Há um “novo” Francisco no cenário

Brindamos, no catolicismo, o kairós da eleição de Mario Jorge Bergoglio,  o Papa Francisco. Surpreendente irrupção do Espírito para alegria das bases eclesiais e para temor das cúpulas eclesiásticas.

Inquirido sobre “quem é Jorge Mario Bergoglio”,  ele respondeu: “sou um pecador para quem o Senhor olhou” [1]. Ousado, afirma: “penso, aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e a mundo” [2]. Sua resposta aos jornalistas, durante o voo do Rio de Janeiro a Roma, sobre  os homossexuais correu mundo: “se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa-vontade, quem sou eu para julgá-la?”     Para Francisco, o Concílio Vaticano II não é apenas fonte bibliográfica mas convicção eclesial, ao insistir: “uma pastoral em chave missionária não está obsecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. (…) Isto é valido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral” [3].

Estamos num mundo novo e, quiçá, numa etapa nova da História da Igreja. O Pe. José

Comblin afirma que a partir dos anos 70 iniciou-se o desmoronamento da Cristandade: “a grande revolução total da sociedade ocidental: revolução na ciência, na economia, na política, na cultura; revolução total e profunda com consequências de uma revolução na ética e na religião. (…) Antigos poderes desapareceram e apareceram novos poderes. Agora sim, estamos chegando ao fim da cristandade. Mas ainda não é o fim da consciência de cristandade dentro da Igreja. Pelo contrário, toda a instituição continua funcionando como se nada tivesse mudado e como se a Igreja ainda tivesse o mesmo poder social de sempre. (…) Ora, o fim da cristandade significa que a evangelização e a pastoral já não podem ser feitas a partir de uma posição de poder. (…) Este é o desafio prático ainda não assumido coletivamente pela Igreja: reconhecer que não se pode mais evangelizar a partir de uma posição de poder, mas apenas numa relação de seres humanos com seres humanos iguais. Na teoria, ninguém contesta, mas na prática, tudo continua como se a Igreja ainda tivesse na sociedade o poder que teve até os anos 70 do século XX” [4].

Leonardo Boff, em encontro promovido pelo grupo de leigos, religiosas e padres da Zona Leste de São Paulo, denominado IPDM (Igreja, Povo de Deus, em movimento), diante de 1.300 pessoas que acorreram para ouvi-lo, dizia: “ou a Igreja assume os novos paradigmas teológicos, culturais, ecológicos na evangelização ou permanecerá uma piedosa seita mariana ocidental”.

            No coração e no pensamento do Papa Francisco não estarão tais preocupações quando confessa: – “Deus manifesta-se numa revelação histórica, no tempo. O tempo inicia os processos, o espaço cristaliza-os. Deus encontra-Se no tempo, nos processos em curso. Não é preciso privilegiar os espaços de poder relativamente aos tempos, mesmo longos, dos processos. Devemos encaminhar processos, mais que ocupar espaços. Deus manifesta-Se no tempo e está presente nos processos da História. Isto faz privilegiar as ações que geram dinâmicas novas. E exige paciência, espera” [5]– ?

Há um “novo” Francisco no cenário: ele vem “do fim do mundo como bispo de Roma”, da Argentina. Vem da América Latina, da proximidade fecunda com a Teologia da Libertação e da compartilhada páscoa dos “Mártires da Caminhada”. Traz na memória o brutal assassinato, por paramilitares do Exército de El Salvador em 16 de novembro de 1989, de seis padres jesuítas e duas senhoras daquela comunidade. Vem das favelas de Buenos Ayres, dos bem articulados planos diocesanos de pastoral e da experiência de ter sido  presidente da Comissão de Redação do Documento Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe – o Documento de Aparecida.

Processualmente o catolicismo vive o kairós-apelo de deixar de ser um “caldo de anti-sexismo e o eco das condenações eternas” a torturar o “subconsciente cultural” da humanidade para tornar-se a força samaritana junto aos caídos à beira do caminho.

Em síntese, saudamos Gonzales Fauz quando afirma: “reivindicações que antes pareciam heréticas agora são palavras do Papa. A Teologia da Libertação tem o mérito de ter suportado maus-tratos como Jesus”.

Há um “novo” Francisco no cenário cuja imagem não se sujeita às pesquisas de opinião pública, nem se intimida frente às artimanhas do poder eclesiástico.

CONTINUA NA PRÓXIMA QUINTA.

Pe. Paulo Sérgio Bezerra
pároco de Nossa Senhora do Carmo – Itaquera
Diocese de São Miguel Paulista

[1] Entrevista Exclusiva do Papa Francisco ao Pe. Antonio Spadaro, SJ, Paulus/Loyola, 2013, p.8.
[2] PAPA FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 16.
[3] idem, ibidem, n. 35-36.
[4] JOSE COMBLIN. “As grandes incertezas na Igreja atual”, REB, fasc. 265, janeiro 2007, Vozes, Petrópolis, p. 37-40.
[5] Entrevista exclusiva do Papa Francisco, op. cit., p. 27.

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